Não havia mais nada que pudesse fazer a não ser esperar. Do lado de fora, a chuva castigava o telhado e apodrecia a terra sob a grama; lama e água turva substituíam o verde. Ele se afasta da janela para atirar algumas lascas na lareira, mas isso pouco fazia contra a umidade que escorria das paredes, oleosa e transparente. Depois de cuidar do fogo, considera mais uma vez o vinho. Não acredita que a bebida possa prejudicá-lo de alguma forma, mas até aquele momento não sabia se ela viria só...
— Ela pediu um cigarro.
— Pode dar. Não vai matá-la.
Disse Yanko na cabine, junto ao timão. O barco navegava sereno; a baia parecia mais uma lagoa isolada numa noite sem vento. A lua cheia, sob um céu sem nuvens, deixava tudo claro. Teriam preferido uma noite sem lua, mas era uma daquelas coisas que nem sempre dava para escolher.
Nestor retorna para a cabine.
— Ela agradeceu.
— É uma moça fina, deve ter sido bem educada.
— E bonita também.
Yanko olha para Nestor um instante.
— Não vai se apaixonar agora, vai?
— Corta essa. Só disse que ela é bonita.
Yanko maneia a cabeça, lançando um olhar sobre os ombros.
— É. É jeitosa, sim. Uma coroa bem apanhada. Uma MILF, como dizem hoje em dia. Você pode brincar um pouco com ela se quiser, mas acho que vai ser jogo duro. — Qual é Yanko? Eu não sou esse tipo de cara. Vá se foder.
Com um sorriso de esguelha, Yanko guina o barco alguns graus para boreste corrigindo a rota pela direção da bússola, sem desgrudar os olhos do sonar de profundidade. Precisa aproximar o rosto da tela para poder fazer a leitura correta. Não enxerga bem à noite. Precisa marcar uma consulta; tinha esperança de que fosse algo que pudesse corrigir sem óculos, talvez algum remédio ou vitamina. Já havia lido em algum lugar que a cegueira noturna era falta de vitamina A. Queria crer que o caso dele fosse por conta disso. Jamais usaria óculos, aceitaria até uma cirurgia se fosse o caso, mas óculos não. Não era vaidade, mas achava que não combinava com o trabalho.
Ela guardava as compras no carro, no estacionamento do mercado, quando ele apareceu acanhado e meio sem jeito. Parecia um cachorro vira-lata apanhado em flagrante mexendo no lixo de alguém.
— Oi. E aí?
— Eu não quero falar com você, João.
Ela continuou arrumando as coisas no porta-malas do carro, agora atirando as sacolas ao invés de acomodá-las de forma organizada como vinha fazendo. Um ódio denso percorria seu corpo e seguia até as extremidades. Não esperava encontrá-lo ali, na verdade, não esperava encontrá-lo nunca mais. Já havia até bloqueado seu telefone. Não fazia ideia de como havia se metido com um sujeito como aquele. Ele se acomodou cabisbaixo ao lado do carro, escorado sobre o teto, ficou uns instantes mexendo em algo no chão com a ponta do tênis puído, capacete na mão.
Na porta do elevador:
— Posso?
— Não sei. Pode? O senhor está sem máscara e estamos no meio de uma pandemia.
Ele já andava sem paciência com tudo aquilo:
— Minha senhora, a senhora já pegou coisa pior e chamou de amor.
A velha recorda por um instante a lágrima solitária de um Pierrô de olhos azuis; em seguida recua
cabisbaixa, abrindo espaço para que ele entre.
Formado em Ciências Sociais pela Universidade do Planalto Catarinense - UNIPLAC, trabalhou durante dez anos na Polícia Civil de Santa Catarina no cargo de Investigador; há doze anos está nos quadros da Polícia Federal como Agente, tendo residido no Amazonas e Rio Grande do Sul.
Pós-graduado em Segurança Pública, publicou seu primeiro livro em 2002, a coletânea de contos "Cinco Movimentos".
Já teve também diversos contos avulsos publicados em antologias com outros autores. Atualmente está residindo novamente em Santa Catarina.
“O Antiquário" é sua estreia na narrativa longa (romance).
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